Em janeiro de 1947, Kantor partiu da Polônia para uma bolsa de estudos em Paris. Lá, abandonou a fascinação pelo cubismo e encontrou uma nova fonte de inspiração, cuja encarnação era a famosa exibição "Le surréalisme en 1947" na Galerie Maeght, com a curadoria de Marcel Duchamp e André Breton. As obras originais mais antigas de Kantor apresentadas na exposição em São Paulo remontam exatamente àquele periodo: a aquarela "Postać z wydrążeniem" (Personagem esburacado, 1947) mostra uma figura humanoide com um buraco no peito, rodeada por duas superfícies parecidas com asas, cobertas por uma rede de divisões geométricas que trazem à mente uma máquina voadora.
Durante o seu fascínio pela estética surrealista, especialmente pela obra de Roberto Matta, Kantor percebia as suas criações como tentativas de explorar a pergunta da existência humana, possível de ser representada metaforicamente no espaço da pintura. O espaço podia ser ocupado tanto por formas suaves, aparentemente orgânicas, como por figuras geométricas pontiagudas. Em "Abstrakcja" (Abstração, 1948) há um conjunto de poliedros, ligando o primeiro plano e o fundo num aglomerado, enquanto "Obraz metaforyczny II" (Quadro metafórico II, 1950) traz à mente uma paisagem áspera acidentada com sólidos tridimensionais, como se fossem figuras humanas petrificadas. Quando Kantor pintava "Obraz metaforyczny II", o realismo socialista já era a doutrina oficial de expressão artística na Polônia comunista – o artista perdeu seu emprego na Academia, e sua obra foi marcada como sendo um fenômeno “formalista” – assim, quase de um dia para o outro, de vanguardista foi considerado reacionarista.
A mudança de forma
Ainda que Kantor tenha se abstido em expor publicamente as suas obras, ele não perdeu o interesse pela pintura. Em 1955, como cenógrafo e figurinista em uma das peças polonesas encenadas no âmbito do Festival Internacional do Drama, Kantor visitou Paris novamente e ficou fascinado pelas obras de artistas como Jean Fautrier, Hans Hartung, Jackson Pollock e Wols. Essa visita marcou uma nova etapa na sua trajetória.
Defensor da arte nova, representada pela vertente informel, Kantor rejeitou a ideia de representação – também de personagens humanas – na esfera visual. Uma tela escura entitulada "Pacyfik VI" (1957) leva as marcas dos gestos do artista – zigue-zagues de tintas branca e preta entrelaçados com respingos de vermelho. O nascimento destes quadros foi registrado em filme duas vezes por estudantes da Escola de Filme de Łódź, Mieczysław Waśkowski e Adam Nurzyński. Um desses filmes, "Somnambulicy" (Sonâmbulos, 1958), foi apresentado na exposição – numa sequência hipnótica de tomadas em câmera lenta se vê a dança da tinta dissolvendo-se na água, adotando as formas de teias de aranha coloridas, formas orgânicas e explosões.
Essa transformação na pintura tinha a sua correspondência na prática teatral de Kantor. Com o grupo Cricot 2, fundado com os artistas Maria Jarema e Kazimierz Mikulski em 1955 (o mesmo ano em que Kantor visitou Paris), ele encenou em 1961 a peça "W małym dworku" (Numa casinha de campo) de Stanisław Ignacy Witkiewicz (Witkacy). A peça, realizada nos porões de tijolo do Palácio Krzysztofory de Kraków, era uma variação do drama satírico de Witkacy, originalmente uma zombaria das convenções clássicas do drama realista. Kantor fez disso uma crítica da própria matéria que forma uma peça: os atores apareciam no palco pendurados dentro de um armário enorme. Apertados como sardinhas na lata, privados de características individuais, injetados num espaço ocupado também por sacos enormes, declamavam partes fragmentadas do texto. Assim, a peça foi liberada da estrutura formal e tornou-se o efeito do gesto de um artista individual – como a tinta derramada na superfície no filme hipnótico. A exposição também abrigava uma reconstrução do armário e desenhos da série "Ludzie atrapy" (Pessoas manequins) dos anos 60. – figuras inquietantes nas quais as pessoas, roupas e cabides juntam-se numa mesma forma.
Aproximando-se do zero
A produção seguinte do teatro Cricot 2, com estreia em junho de 1963, também se baseava num drama de S.I. Witkiewicz. A peça "Wariat i zakonnica" (O louco e a freira) era para Kantor a etapa seguinte na sua prática teatral, que foi descrita no manifesto "Teatr zerowy" (Teatro nulo) criado durante a preparação do drama. Kantor escreveu que estava indo "em direção ao vazio e aos arredores do zero" a fim de tocar a realidade2. Os meios para atingir isto eram, entre outros, o uso da "atividade automática”, "terror" e "barulho". O enredo do drama, se passando num hospital psiquiátrico, girando em torno da questão da loucura, constituiu a base de uma peça inusitada, onde os atores eram forçados a lutar pelo espaço com a "Máquina aniquiladora” – interrompendo toda a ação cênica com o seu barulho.
No mesmo ano, a máquina voltou para a Galeria Krzysztofory de Kraków – desta vez como um elemento de uma mostra individual de Kantor, chamada "Anty-wystawa, czyli wystawa popularna" (Anti-exposição, ou a exposição popular). As fotografias daquela época mostram um espaço preenchido com dezenas de objetos (segundo o cálculo do próprio artista – exatamente 937 peças), desde anotações e desenhos, pendurados em cordas com pregadores de roupa, até vários tipos de utensílios. Nesta retrospectiva singular e pessoal, Kantor pretendia que “se trate como criação artística tudo o que ainda não se tornou uma obra de arte "3. Mas a parte seguinte da exposição no Sesc, apresentada no piso superior, sinalizava que uma nova mudança já estava no ar – o objeto iria retornar de um modo inesperado.
Embalar e desembalar
Supostamente, um dos motivos para Kantor decidir chamar os resultados de sua busca artística como ambalaże (do francês "emballage”, embalagem), se deu pelo fato de que a palavra francesa soava adequadamente no contexto de outros termos, como "frottage" ou "collage", que naquele tempo já tinham entrado no vocabulário artístico4. "Ambalaż", "embalagem” significa para Kantor uma ação que permite expor o objeto, ao mesmo tempo tornando-o invisível – uma forma de visualizar algo através de uma perspectiva antes desconhecida.
Entre as sua primeiras obras realizadas nesta linha, exibidas em São Paulo, foram os dois exemplares da série "Torby przemysłowe" (Sacos industriais), onde embalagens vazias de artigos químicos fixados a uma base ("Saletr… 25… N.4 MGO", 1964) continuam se ligando à sua função anterior. Ao mesmo tempo, surgiram telas que combinavam a pintura com o tema da embalagem, como em "Stemplowane słońce, 27. VII" (Sol carimbado, 27 VII , 1967), mostrando uma fileira horizontal de cinco envelopes acompanhados por círculos coloridos de vários tamanhos, parecidos com carimbos postais ou selos de lacre. Foram as ambalaże de pintura que proporcionaram a Kantor o segundo prêmio durante a IX Bienal de arte em São Paulo em 1967. Entre as obras mais características daquele período está o quadro "Infantka wedle Velazqueza" (A infante segundo Velázquez, 1966-1970), apresentado na exposição, onde a cabeça do personagem histórico foi justaposta com um saco de tecido localizado na parte inferior da composição.
O outro extremo das atividades de Kantor era o ato de desnudar: um dos exemplos é "De-emballage" (1966), onde uma personagem masculina, semelhante a uma caricatura do homem vitruviano, tira a roupa que cai ao solo. Este motivo voltou na obra "Lekcja anatomii wg Rembrandta" (Aula de anatomia segundo Rembrandt) onde Kantor, assistido por um grupo de espectadores, utiliza tesouras para realizar uma necrópsia da roupa da pessoa deitada na mesa – exibindo ao mesmo tempo para o público os lados interiores dos bolsos do “paciente”, como órgãos do “instinto de guardar e memorizar” humano. Mas aquele acontecimento, encenado em 1968 para o filme "Kantor is da", de autoria de Dietrich Mahlow e realizado para a Saarbücken TV (cujos fragmentos foram apresentados no âmbito da exposição), já pertence ao seguinte capítulo das realizações de Kantor.
Happenins
Kantor ficou fascinado pelo happening em meados dos anos 60. Uma viagem aos Estados Unidos com Maria Stangret – sua segunda esposa, atriz do Cricot 2, com a qual se casou em 1961 – proporcionou-lhe a possibilidade de observar as obras de artistas como Claes Oldenburg, George Segal, entre outros. "Cricotage" (1965), o primeiro happening que dirigiu após o seu retorno, ocorreu em Varsóvia. A ação se consistiu em um grupo de artistas e críticos realizando atividades cotidianas (comendo, se barbeando ou transportando objetos) em sequências repetidas.
Os happenings seguintes de Kantor faziam referências a obras de arte históricas ou desenvolviam suas ideias próprias. O happening penetrou também nas obras do teatro Cricot 2, cuja encenação seguinte, "Kurka wodna" (Galinha d´água, 1967), baseada numa peça de S.I. Witkiewicz, foi concebida por Kantor como um exemplo de Teatro de Happening ou Teatro de Acontecimentos. A ação do drama ocorria em um café improvisado (ou cantina) e, enquanto o público era atendido por garçons, o espaço gradualmente se enchia de atores – muitos deles portando roupas de viajantes que envolviam seus corpos, assim como as suas bagagens pesadas.
Um dos últimos happenings de Kantor, "Multipart", ocorreu na Galeria Foksal de Varsóvia em 1970. Concebida como uma junção de "multiplicação" e "participação", a atividade ocorria em duas etapas: a primeira era a venda de 40 telas – cada uma delas com um guarda-chuva fixado na superficie, cobertas por uma camada de tinta branca – por um preço baixo, mas obrigando o comprador de modificar por conta própria a obra comprada. A segundo etapa era a exibição das obras no ano seguinte. Assim verificou-se que, ainda que algumas telas tivessem sido realmente modificadas pelos proprietários novos, outras continuaram, aparentemente, intactas ("Multipart III", 1970). O destino de um dos objetos, levado durante um desfile oficial de 1º de maio por estudantes de arquitetura e em seguida enterrado nas proximidades da Galeria Foksal, foi registrado em um filme durante a exposição. Esta etapa de criação artística, como indicava Lech Stangret, sugeriu a Kantor uma pergunta importante: se o próprio artista cede o ato criativo ao público, será que a realização de obra é realmente necessária?5 A formulação daquela pergunta marcou para o artista a incursão em um outro território.
O impossível
As séries "Monumentos impossíveis" resumem este esforço – representados, na exposição, por quadros de colagem em preto e branco, mostrando enormes objetos com panoramas urbanos ao fundo. Entre eles, está uma lâmpada gigantesca que parece ser fundida com o chão de uma praça urbana pavimentada, se assemelhando a um sino abandonado de uma igreja, e também um grande cabide de roupas unindo as duas margens do rio Wisła (como uma ponte) em Kraków. Por fim – a mais conhecida de todas – uma cadeira de grandes proporções – projeto apresentado no Simpósio Plástico em Wrocław'70.
Ao mesmo tempo, Kantor começou a trabalhar na peça "Nadobnisie i koczkodany" (Formas delicadas e macacos peludos) de S.I. Witkiewicz, fazendo a sua estreia em 1973. A encenação deliberadamente opaca foi imaginada como um exemplo do Teatro Impossível: a ação decorria no vestiário onde apareciam os atores da peça, supostamente encenada atrás da porta, numa sala inacessível para o público. O comportamento dos atores, os seus movimentos, repetidos obsessivamente, foram determinados pelos acessórios que eles carregavam consigo, tais como uma tábua de madeira, uma porta, uma cabeça ou um par de pernas adicionais. O papel do público não se limitava à observação passíva – estavam sendo constantemente incomodados por dois funcionários pouco educados que os solicitavam que tirassem os seus sobretudos e mudassem de lugar. Kantor concebeu uma situação na qual a realidade “aqui e agora”, os elementos do drama e a realidade convencional do teatro contribuíam juntos para criar um novo conceito. Era a última peça do teatro Cricot 2 baseada numa obra de Witkacy. Kantor estava apenas a um passo de mais uma transformação no seu método criativo.
O mecanismo da memória
A decisão dos curadores em apresentar a parte provavelmente mais conhecida da obra de Kantor, referente às duas décadas seguintes, em uma parte da exposição, é ao mesmo tempo simplificadora e impressionante. Começando com "Umarła klasa" (A classe morta), cuja estreia ocorreu em 1975, os atores do teatro Cricot 2 se tornaram as testemunhas e os construtores de um mundo inquietante e cativante, constituido pela junção de recordações infantis, experiências traumáticas, acontecimentos históricos, referências culturais e citações. A vida na aldeia de Wielopole, a guerra, a volta do pai, o Holocausto – a biografia de Kantor repetida – e obsessivamente revivida no palco em uma tensão incrível entre a veracidade e a sua ausência, a realidade e a história, expondo a impossibilidade do retorno à terra da juventude e, como consequência, transmitindo a mesma emoção aos corações do público.
Entre esses objetos da exposição, aparentemente mortos, mas que sempre fazem uma continência ante a recordação, se destacavam o "Banco de escola", com um menino vestido em um uniforme escolar escuro como o breu de "Umarła klasa" (1975) e o "Szkielet rekruta" (Esqueleto de um recruta) num uniforme militar gasto, da cor da areia do deserto, do drama "Wielopole, Wielopole" (1980). Havia também uma fileira de pelourinhos de madeira da peça "Niech sczezną artyści" (Que morram os artistas, 1985) e o "Arco do Odisseu" de "Nigdy tu już nie powrócę" (Nunca mais volto para cá, 1988). Além disso, havia ainda uma câmera fotográfica parecida com uma metralhadora – um elemento imprescindível de todas aquelas peças. Seu uso no palco era acompanhado por um som penetrante, chacoalhante, estabelecendo uma clara conexão entre o ato de memorizar que se transcorre num determinado momento e a morte. Como o descreveu Jarosław Suchan: "Umarła klasa", bem como todas as produções posteriores, constituem em princípio “um registro de fracassos em que culminaram os vários esforços de Kantor em recuperar o passado.”
Na parte posterior da exposição no Sesc Consolação, junto ao lance de escadas que leva os visitantes de volta para o primeiro andar, encontrava-se uma figura masculina pequena, inclinada, de cabelo despenteado e rosto pálido como a cal, deformado numa careta característica. É o mesmo homem que se pode ver nas gravações das peças de Cricot 2 – gesticulando, seguindo os atores com um olhar impaciente. A figura agora parece deslocada, ou até mesmo desamparada. O fato de que o nome da peça para a qual foi criado esse personagem seja "Nigdy tu już nie powrócę" – soa tranquilizador, e não de forma irônica – como uma aceitação última de nossa natureza finita. Mas já mais próximo da entrada, o estrondo mecânico abafado das pilhas de cadeiras provava o contrário: a máquina está funcionando.
Autor: Krzysztof Kościuczuk, tradução para o português: Marek Cichy
Fontes:
1 T. Kantor, ‘The Ithaca of 1944’, A Journey Through Other Spaces: Essays and Manifestos, 1944-1990, ed. And trans. M. Kobialka, Berkeley, 1993, p. 147-148.
2 T. Kantor, ‘The Zero Theatre’, ibidem, p. 60.
3 T. Kantor, ‘An Anti-Exhibit, ibidem, p. 24.
4 L. Stangret, Tadeusz Kantor. Malarski ambalaż totalnego dzieła, Kraków, 2006, p. 53.
5 L. Stangret, ibidem, p. 78.
Visite o site Culture.pl/brasil para obter informações sobre os mais interessantes eventos da cultura polonesa que ocorrem no Brasil, e ter acesso a uma grande quantidade de biografias, resenhas e artigos.