Agnieszka Sural: Você tem raízez polonesas, judaicas, muçulmanas, portuguesas e italianas. Como a sua familia chegou ao Brasil?
Tiago Halewicz: Minha avó paterna nasceu em Zduńska Wola em 1926. Durante a II Guerra Mundial, aos 14 anos, ela foi enviada para Alemanha para trabalhos forçados. Em uma fábrica alemã, perto de Koblenz, ela conheceu meu avô, Henryk Halewicz, nascido em Blagaj, Bósnia, porém de família com origem polonesa, da Galícia. O fato mais curioso é a união da minha avó, de origem judia, com um polonês-bósnio de crença muçulmana.
Em agosto de 1945, logo após a liberação dos meus avós dos trabalhos forçados, nasceu meu pai, Ryszard. A família manteve-se na Alemanha sob ocupação francesa durante alguns anos, até migrar para o Brasil e fixar residência em Porto Alegre.
Minha mãe, nascida no Brasil, é o estereótipo do povo brasileiro: possui raízes italianas, portuguesase árabe-judias. Sou filho da imigração mais recente de poloneses no Brasil.
Há muitos descendentes poloneses em Porto Alegre?
A primeira leva de imigrantes chegou nas últimas décadas do século XIX, no período conhecido como “grande imigração”, quando a Polônia não existia como estado autônomo. O segundo momento migratório acontece no Entre Guerras, em menor número. Logo após a II Guerra, há um novo fenômeno migratório de poloneses para o Brasil, mais intenso no final da década de 1940. Estima-se que no Estado do Rio Grande do Sul, onde nasci e vivo atualmente, três por cento da população tem origem polonesa.
A presença deles teve uma influência sobre a formação da cidade e da cultura local? Assim como foi no caso da atividade de Yanka Rudzka em Salvador ou de Zbigniew Ziembinski no Rio de Janeiro?
Em Porto Alegre, minha cidade, apesar de ter uma expressiva presença de descendentes de poloneses, não há nenhuma marca patrimonial ou um ícone que tenha influenciado na construção ou desenvolvimento da cidade (hoje com 244 anos). É diferente de outras cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul, como Dom Feliciano, Áurea e Erechim, onde vemos claramente a influência dos poloneses no dia-a-dia e no patrimônio da cidade.
Na sua atividade como pianista você promove a música polonesa. O seu gosto à música da Polônia se formou na sua casa familiar?
Minha formação em piano deu-se na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação de Maly Weisenblum, pianista brasileira de origem judaico-polonesa, graduada na Academia de Viena. Apesar de ter passado um período na Academia Chopin de Varsóvia (Uniwersytet Muzyczny Fryderyka Chopina w Warszawie), foi a pianista Maly Weisenblum que me estimulou à pesquisa de compositores poloneses, como Karol Szymanowski, Kazimierz Serocki e Witold Lutosławski.
Isso é um fato raro na formação pianística brasileira, já que Chopin é o único compositor polonês obrigatoriamente trabalhado nos programas de formação em música no Brasil. É muito raro encontrar compositores poloneses nos programas das salas de concerto no Brasil. Temos um universo de formação ainda muito voltado para a música ocidental tradicional. Sob a influência da professora Weisenblum, eu passei a dedicar meus programas de concerto aos compositores poloneses, inciando assim meu projeto de difusão da Polônia no Brasil.
Você se tornou um especialista em obra de Karol Szymanowski.
Lembro exatamente do dia em que minha professora na Universidade, Maly Weisenblum, abriu um armário e me apresentou um caderno de capa azul onde eu pude ler "Mazurki op. 50 – Karola Szymanowskiego". Ela imediatamente me disse: "Acho que tu deves tocar isto".
As mazurkas de Szymanowski, obras compostas em sua última fase de vida, me revelaram um universo completamente estranho, dissonante, mas ao mesmo tempo sedutor pelo seu exotismo. Aos poucos, as mazurkas de Szymanowski começaram a fazer muito sentido para mim. Após vencer as dificuldades técnicas, os temas folclóricos apareciam como em um passe de mágica. Depois de estudar as Mazurkas, vieram os Estudos op. 4, as Variações op. 10, as Sonatas. E eu não parei mais. Szymanowski tornou-se um norte na minha vida musical.
Entretanto, meu grande trabalho relacionado com a obra de Szymanowski aconteceu a partir da ópera Rei Roger op. 46, estreiada em 1926 em Varsóvia. Lembro ter assistido uma montagem na Opera de Wrocław, o que me deixou muito curioso por saber mais sobre o trabalho do compositor. Comecei a pesquisar de forma mais profunda a biografia de Szymanowski, principalemente a correspondência que manteve com o escritor Jarosław Iwaszkiewicz. A partir de então passei a estudar o libretto da ópera e "O nascimento da tragédia" de Nietzsche, livro que influenciou muito tanto Szymanowski quanto Iwaszakiewicz. Tendo como base as cartas, o libretto e os textos de Nietzsche, passei a concretizar uma pesquisa sobre o discurso homoerótico presente não só no enredo da ópera, mas nas nuances musicais escritas pelo compositor.
Como aconteceu que você acabou traduzindo para o português os poemas de Wisława Szymborska?
Sempre admirei a obra de Szymborska. Traduzia alguns poemas para compartilhar com amigos ou para apresentar em alguma palestra sobre a literatura polonesa. O trabalho com a tradução foi sendo aprimorado aos poucos e via o impacto que esses poemas causavam em algumas pessoas. Não havia nenhuma tradução de textos de Szymborka para a língua portuguesa do Brasil. Assim decidi incluir uma coletânea de poemas, traduzidos por mim diretamente do polonês, em um capítulo do meu primeiro livro, chamado "Memória cultural polonesa", publicado em 2008. Algumas pessoas me questionam sobre essa mudança de foco: o pianista que se converte em tradutor de poesia. Mas, afinal de contas, música é pura poesia.
Meu segundo livro, "Caminhos de Chopin", foi lançado em 2016 por R&O Editores e Casamundi Cultura com o apoio do Consulado da Polônia em Curitiba. É um guia das viagens de Chopin pela Europa. Foram cinco anos de pesquisa e viagens para traçar um verdadeiro mapa chopiniano desvendado através de suas cartas. Com certeza, há publicações bastante semelhantes na Polônia, mas nenhuma obra trata as viagens do compositor de forma integral – e em língua portuguesa – com análise histórica e musicológica.
Em 2008 você assumiu a função do curador da programação do StudioClio – Instituto de Arte & Humanismo. Foi fácil concilhar o cargo com a carreira artística?
Aos poucos passei a deixar a minha vida artística de lado – realizei meu último concerto solo em 2010 – para me dedicar à pesquisa e à gestão do espaço cultural. Ao longo dos oito anos que estive a frente do StudioClio pude convidar muitos artistas poloneses para a programação de música. Entre eles, Marian Sobula, Michał Szymanowski, Joanna Trzeciak, Piotr Zukowski.
Passei a entender que era necessário ver a cultura de forma mais profunda e multidisciplinar, analisando as relações entre as diversas disciplinas criativas, música, artes visuais, literatura, arquitetura. Cheguei ao ponto que eu desejava trabalhar com o fenômeno da cultura de forma ampla e dialogando com diversos campos e públicos. Eu, que só abordava a música em minha pesquisa – e não estava completamente satisfeito – abri um novo campo, o diálogo trans e multidisciplinar.
À medida que ampliei minhas áreas de interesse, vi que se tornava necessário explorar esses conteúdos in loco. Assim surgiu meu trabalho com o turismo cultural, levando pessoas para aprender e desfrutar dos cenários e conteúdos tão abordados em minhas palestras.
De quais cenários se trata?
Meu obejtivo foi sempre fugir das rotas turísticas tradicionais e oferecer aos viajantes algo mais autêntico e com apoio de guias locais especialistas. Já realizei três viagens dedicadas integralmente ao patrimônio de Chopin, reproduzindo suas viagens de infância e adolecência, finalizando em Paris e Nohant. Ao longo da viagem, os participantes tinham a oportunidade de assistir a concertos privados de piano.
No último ano, o roteiro foi dedicado à Polônia no contexto Báltico. Sendo assim, os viajantes iniciaram em Varsóvia, seguindo para Poznań, Gdańsk, a região dos lagos na Masúria e depois às Repúblicas Bálticas. Este ano visitaremos a Baixa Silésia, com destaque para Wrocław e pequenas cidades do seu entorno.
Minha proposta de turismo na Polônia é mostrar ao público brasileiro que o país oferece mais do que atrações que constam em catálogos de turismo. É possível encontrar paisagens incríveis que até então os brasileiros não imaginavam existir, como a região dos lagos, Sudety ou Beskidy.
Após Casamundi Turismo – uma empresa dedicada ao turismo cultural, você criou Casamundi Cultura.
Em 2015 constatei que o mercado de cultura no Brasil se tornava cada vez mais exigente. Desejava um ambiente mais aberto e democrático, um espaço destinado a discutir a cultura de todos os tempos, mas com uma leitura contemporânea. Da mesma forma, vi que o mercado brasileiro – e da minha cidade – necessitava de um ambiente para “viver a cultura”, mas também para abordar as inquietações contemporâneas.
A Casamundi Cultura é um centro cultural que materializa um projeto de (re)pensar as transformações do mundo contemporâneo. A partir de encontros, cursos e palestras, a Casamundi promove um espaço extra-acadêmico para aprendizado e compartilhamento de ideias. Com uma equipe comprometida a impulsionar o entendimento e o aproveitamento da cultura sob viés multidisciplinar, as atividades têm professores especializados e englobam temas como literatura, design, fotografia, cinema, arte e relações internacionais. A Casamundi Cultura preza por um saber livre de normas e doutrinas, pressupondo a diversidade de opiniões e estimulando o debate. A instituição segue os passos de sua “irmã mais velha”, a Casamundi Turismo, incluindo na agenda conteúdos que dialogam com tudo aquilo que envolve o ato de viajar. A Casamundi possui muitas faces, consegue congregar no mesmo lugar temas que vão desde a crise dos refugiados na Europa até a obra de Miguel de Cervantes, passando pelo design escandinavo e cinema polonês. É um espaço múltiplo que causou um impacto muito positivo na imprensa e na comunidade que consome cultura em Porto Alegre
Qual é o seu público-alvo?
Meu foco não é atingir pessoas que possuem laços afetivos com a Polônia – como os descendentes. Destacando as qualidades dos temas culturais poloneses que apresento tendo a conquistar um novo público, pessoas de todas as origens, de todas as idades. Posso dizer seguramente que 99 por cento das pessoas que participam das atividades de cultura polonesa que organizo são pessoas que enxergam na arte, na música, na literatura da Polônia um valor estético e artístico, independente desses laços afetivos.
Muito em breve teremos outros docentes que estão sendo preparados para abordar os temas, até então, abordados somente por mim. Explorar o design polonês em nossa programação é o próximo passo. Penso na ampliação da empresa em 2017 e na criação de novas frentes de trabalho. Um dos projetos que posso adiantar é um curso de capacitação chamado “Polônia: cultura, arte e patrimônio”. Esse curso seria destinado aos novos docentes que estão em formação, bem como a pessoas ativas e lideranças das comunidades polonesas no Brasil. O curso inicia em nossa instituição e cumpre uma segunda parte na Polônia, com visitas técnicas a acervos de museus e instituições.
Varsóvia – Porto Alegre, abril de 2016
Visite o site Culture.pl/brasil para obter informações sobre os mais interessantes eventos da cultura polonesa que ocorrem no Brasil, e ter acesso a uma grande quantidade de biografias, resenhas e artigos.