Agnieszka Sural: No seu trabalho artístico você se movimenta entre a arte e a arquitetura. O elo entre elas são as questões sociais, a história, a tradição e, com frequência, a temática judaica. De onde vem o interesse por estes assuntos?
Jakub Szczęsny: Tratamos da temática judaica dentro do grupo do projeto Centrala já antes de eu ter começado a realizar projetos individuais. Foi na época em que algumas formações nacionalistas procuravam apresentar a Polônia como um espaço monocultural, tal como nós a encontramos após as tragédias do século XX e o comunismo, que não toleravam a diversidade religiosa, étnica e cultural – por serem difíceis de controlar.
Não queríamos uma cultura dominada por uma única narração legitimada, seja na sua versão comunista, ou nacionalista. Na Polônia, abundam motivos ligados a outras culturas, religiões ou raças. A temática judaica é rica e interessante e, para muitos de nós, era algo exótico e desconhecido, como uma tabula rasa.
Você se lembra do seu primeiro contato com a polonidade judaica - ou judaidade polônica?
Acho que foi nos anos 1980, quando vi na "National Geographic" uma reportagem de Tomasz Tomaszewski sobre a minoria judaica na Polônia vivendo na pobreza durante o final da época comunista. Foi então que comecei a perceber que antigamente havia aqui uma riqueza muito maior. Claramente eu havia lido anteriormente a literatura histórica e a literatura de ficção romântica, onde a presença judaica é bastante marcante.
Por volta do ano 2002, antes mesmo do concurso para o projeto do Museu da História dos Judeus Poloneses nos demos conta de que, junto com o desaparecimento quase total dos judeus, a Polônia tinha sofrido uma grande perda cultural.
Sua proposta não foi escolhida no concurso para o projeto do museu mas, por sua vez, vocês venceram o concurso para o pavilhão temporário, que anunciava a construção do museu. Na Praça Bohaterów Getta (Heróis do Gueto) vocês colocaram uma tenda azul que servia como um ponto de informação, espaço expositivo e lugar de encontros. Vocês chamaram este local de Ohel.
O nome vem da palavra hebraica que significa "tenda". É uma unidade de marcação do espaço, tanto em categorias geográficas e práticas, como simbólicas. Lugares dotados de um significado especial exigem uma forma bem simples de cobertura – inicialmente, ela é construída com apenas quatro paus e um pano e, mais tarde, começa a se ampliar, transformando-se, enfim, em uma casa.
Além da vontade de não esquecer, quais foram os seus propósitos?
O que importava para mim e para Centrala era buscar elementos do passado e atribuir-lhes algum sentido. Este tipo de arqueologia contextual servia como base para uma conversa sobre o futuro.
Naquele momento você estava elaborando os projetos para a Temporada Polonesa em Israel.
Aquela temporada cultural foi uma das ideias mais afortunadas de Lech Kaczyński. Fui coautor dos quadrinhos polono-israelenses publicados no livro "Kompot" ("Compota") e da instalação "Pchechong", sobre o inverno mais rigoroso do centenário, criada junto com o grupo Eifo Dana.
A maior parte do que você faz, além da arquitetura, procura melhorar a realidade, porém, é bem efêmero. O projeto realizado em Israel é uma exceção, pois ele funciona até hoje.
Salvo as duas instalações na Palestina, a instalação Auréola em Wrocław e a Casa de Keret, o Tamaguchi Park é provavelmente o meu projeto artístico com a "vida" mais longa de todos. Ele foi criado como efeito de uma cooperação duradoura com Ofer Bilik de Eifo Dana e com a cidade Bat Yam. Em 2010, devido ao déficit de água, foi proibido regar jardins e pomares privados, por isso, nós propusemos o uso da água marinha dessalgada.
Tratava-se também de não agravar o conflito com os palestinos, o que ocorria frequentemente quando era preciso bombear a água drenada dos morros de Jerusalém Oriental e da Palestina. Basta dessalgar a água marinha e para isso é preciso energia, por exemplo, a energia social. É preciso estabelecer uma conexão entre soluções técnicas simples e a motivação para atuar.
Como se pode dessalgar a água marinha por meio da energia social?
Nós construímos um balanço capaz de bombear água desde abaixo do nível do mar para a torre de pressão, da qual - feito um pequeno esforço - a sobra da água salta para o ar. Quando você chega na praia em Bat Yam, você balança de pé junto com outra pessoa e, ao mesmo tempo, você bombeia a água marinha. Da torre de pressão, a água é transportada para as cúpulas feitas de Makrolon, que, sob a influência dos raios UV, fazem com que a água dessalgue, direcionando-a para as plantas resistentes ao alto teor de sal. O homem, brincando, mantém vivo um jardim no pé das dunas. É, portanto, um ser vivo impulsionado pelo esforço humano, por isso o nome Tamaguchi Park.
Outro projeto duradouro é a Casa de Keret, que você construiu numa brecha entre dois prédios no bairro varsoviense de Wola. De onde veio a ideia?
Veio de um fascínio pelos buracos entre prédios, típicos das construções varsovienses. Grande parte da cidade reconstruída depois da guerra não fazia referência à parte construída antes da guerra, ou mesmo a evitava, deixando um espaço vazio. A cola que pode unir as duas partes não é a arquitetura por si só, mas o homem, suas ações, obras, sua vida.
E por que você escolheu Keret?
Minha intenção era aproveitar o potencial das pessoas que eu tinha encontrado em Israel e que eu podia trazer para a Polônia, fazer um "networking" com elas. Keret e sua família sentem um pertencimento forte à polonidade, à Varsóvia. Eu me lembrei de uma entrevista que eu tinha lido ainda nos tempos de liceu, com um jovem escritor israelense que tinha visitado a Polônia e tinha dito que aqui era muito bacana. Foi no início dos anos 1990. Keret não dava bola para tudo que era martirológico e abatedor e dizia: "Vamos colocar no foco o que temos agora. Vocês têm tensões sociais interessantes". Isso me cativou. O fato de que alguém, ligado ao passado difícil deste lugar, chega de repente no meio dele e não quer olhar para trás.
Qual foi a reação dele à sua proposta?
Ele disse que parecia muito bom, mas impossível de realizar. A maioria dos funcionários públicos dizia a mesma coisa. Um edifício de 14 metros quadrados - é impossível, diziam, mas vou lhe dar minha autorização, talvez você consiga. Foi uma espécie de esforço comum: ajudar um louco, graças à boa vontade de algumas dezenas de pessoas envolvidas - funcionários públicos, patrocinadores, construtores, pessoas que trabalham com a cultura.
Em 2016, por conta do programa de apresentação da cultura polonesa no Brasil você planeja realizar um projeto na casa da cultura judaica em São Paulo.
Pretendo construir no telhado da Casa do Povo uma instalação que será uma estrutura de sobrevivência para um imigrante-refugiado. Quero falar por meio dela sobre a identidade nacional contemporânea, assimilação, inadequação de pessoas a construções nacionais. A ideia surgiu há um ano e, de repente, tornou-se extremamente atual como tema.
O projeto procura responder até que ponto a nossa identidade nacional é imposta por um certo tom cultural do lugar. No caso do Brasil, é o construto modernista evidente da virada das décadas de 20 e 30 do século XX, elaborado por um conjunto de nomes ilustres da ciência e cultura daquela época, tais como: Oscar e Fernando Freire ou Flavio de Carvalho.
A essência deste construto é a "metissage", uma certa abertura para a mistura das influências europeias, africanas e indígenas. No Brasil você vai ouvir que é um construto ideológico que não corresponde muito bem à realidade, pois a mestiçagem ocorre apenas entre as classes sociais mais baixas. No meio da classe média e alta de São Paulo você encontra praticamente só pessoas de origem europeia.
Olhando para a Polônia, pode-se dizer que nós próprios estamos meio perdidos dentro do construto da identidade.
Não nos damos conta do fato de que a nossa esfera ideológica seja um conglomerado inconsequente de elementos do nosso passado difícil. A combinação do complexo de vítima com um ego exuberante de nação, que um dia foi um império local, sempre será uma mistura explosiva. Por outro lado, a tragédia do rebaixamento social e das repressões no período das partilhas da Polônia, tornaram-se um fundamento para a nossa intelligentsia, assim aconteceu por exemplo na minha família. Como castigo pela participação da Insurreição de Janeiro, o Czar lhes retirou o título de nobreza, confiscou os bens, e deportou para a região dos Urais. Graças a esse fato, os descendentes da terceira geração se tornaram engenheiros da indústria petroleira e precursores da aviação e voltaram para o país a fim de construir a Polônia de entreguerras. Como consequência, esta classe, se ela realmente continua a existir, carrega consigo características - tanto boas, quanto más - de um ethos da nobreza.
Que tipo de poloneses você encontrou em São Paulo?
Encontrei pessoas que não se encaixavam nesse construto na sua versão polonesa. Com frequência, foram pessoas de origem judaica que, com entusiasmo, levantavam o braço chamando "eu também sou polonês!". Sendo polonês, sei que no meu caso não é preciso fazer um teste genético para confirmar que sou resultado de uma troca histórica de genes entre eslavos, armênios e prussos. A minha noiva acha, aliás, que o formato do meu nariz deixa presumir que neste coquetel houve também um elemento africano. Para completar, sou um agnóstico liberal, o que não necessariamente se encaixa no modelo da polonidade atual.
Qual é a história da Casa do Povo?
Foi um lugar que reunia emigrantes poloneses de origem judaica: uma casa de cultura concebida dentro da estética de grandes galpões industriais, na qual se podia colocar, de tempo em tempo, um novo conteúdo. Um projeto extremamente modernista, criado por pessoas que falavam polonês e iídiche, mas também russo, pois a intelligentsia judaica vivia com uma espécie de “Eu” dividido em três.
A ideia de fundar a Casa do Povo surgiu no final da década de 40. O prédio foi construído em 1953, por meio da arrecadação de fundos. Até os anos 80, funcionou lá um teatro para 1000 espectadores, grandes galpões com oficinas, escola, jardim de infância, redação de um jornal. Mais tarde, não havia uma troca de gerações e o lugar começou a decair cada vez mais. Só o coral continua a funcionar até hoje.
Que tipo de influência tinham os poloneses na história do Brasil?
Minha intenção é falar sobre o tema na segunda parte do meu projeto, na forma de um guia polonês de São Paulo. Será um conjunto de expressões de vários poloneses, começando pelos imigrantes poloneses exilados da Polônia durante o regime comunista, pela nobreza, às vezes aristocratas. Trataremos também da produção intelectual de um grande grupo de artistas, arquitetos, colecionadores de arte, designers, ou homens de teatro, enfim, personagens na sua maioria pouco conhecidos na Polônia, tal como Jorge Zalszupin, ou Paulo Kuczyński. Na cidade que tinha uma diáspora polonesa relativamente pouco numerosa, foi um grupo de pessoas de alta qualidade intelectual.
O guia conterá também um enredo judaico, inclusive a história das prostitutas que é um tema vergonhoso para a comunidade e por isso um tanto apagado. Foi uma ideia lançada por Renato Cymbalista, professor de arquitetura na Universidade de São Paulo. Junto com a professora Janowicz que trabalha com o tema de "prostitutas polonesas" e Roney Cytrynowicz, historiador e editor, eles propuseram uma forma de guardar a memória sobre estas mulheres no contexto do seu enterro. É que, desde os anos 1950, alguns infratores não identificados apagavam letreiros nos seus túmulos.
Desde os anos 80 do século XIX até os anos 50 do século XX, várias moças da região da Galícia e da parte anexada pela Rússia foram enviadas para o outro lado do Atlântico para, em teoria, se casarem com fazendeiros americanos. Na realidade, foram forçadas à prostituição, o que se tornou um negócio movimentado gigantesco, ao longo de 70 anos, por quadrilhas especializadas. Até hoje, para as gerações mais velhas no Brasil ou na Argentina, a palavra "polaca" significa prostituta.
De que forma você pretende evocar a memória delas?
Queremos construir uma sinagoga portátil. Receberemos uma torá de um rabino conhecido nosso de Brooklyn e queremos consagrar uma unidade arquitetônica leve que poderá ser transportada por poucas pessoas para vários espaços públicos, começando por cemitérios e terminando com parques e praças.
Será uma espécie de conto histórico, relacionado com as transformações de regras morais ocorridas na sociedade brasileira. Na década de 50 do século XX, no Brasil, floresceu uma forma específica de puritanismo católico com um revestimento nacionalista. O efeito disso foi o período da ditadura que durou até os finais dos ano 1980 e, por conseguinte, uma imigração significativa dos intelectuais brasileiros para fora do país, cujas consequências o país sofre até hoje.
A cultura brasileira atual sofre de uma esclerose que apaga rapidamente o passado. As pessoas olham com maior vontade só para o futuro.
Quais são as razões disso?
Foi um país que recebia ondas seguidas de imigrantes econômicos e de refugiados de guerras na Europa. Foi um país de um futuro melhor. Lá "se fazia América" na versão sulista. Muitos europeus foram bem-sucedidos, vide a história de Samuel Leiner, jogador do clube Legia Warszawa, que se tornou empreendedor industrial e colecionador de arte.
Atualmente, as maiores ondas migratórias no Brasil são migrações internas - do campo para cidade.
É também uma promessa de um futuro melhor. No ano passado, graças à fundação Musagetes, realizei no prédio do antigo hotel São João um projeto que abordou a questão. O hotel era uma espécie de modelo para as pessoas vindas do interior, que ocupavam prédios nos centros das cidades brasileiras.
O centro de São Paulo esvaziava até o final da década de 70, desde quando os grandes negócios tinham começado a se mudar para as outras regiões da cidade e a deixar lindos edifícios construídos no estilo art déco difíceis de serem alugados. Lugares, tais como o hotel São João de seis andares, passaram a ser ocupados por grupos organizados de pessoas vindas de localidades pequenas, que encontravam emprego no setor de serviços e precisavam morar perto do centro.
Às vezes, aldeias inteiras moram juntas. No início, eles mandam para um prédio vazio alguns reconhecedores que iniciam a ocupação, negociam com vizinhos as conexões ilegais à rede de abastecimento de água e energia e à rede de esgoto. Depois fazem a reforma, transformando os prédios mortos em estruturas em funcionamento. Uma das maiores das chamadas "ocupações" é o hotel Cambridge que possui 15 andares. Apesar do estatuto semi-legal, ele abriga uma padaria e cada andar tem seu chefe da brigada de incêndio devidamente formado. Em colaboração com o Instituto Goethe, criamos no antigo hotel São João um jardim vertical. A ideia era criar um modelo de produção independente de verduras, frutas e ervas em espaços de grandes centros urbanos.
A situação legal de "ocupações" desse tipo muda com o tempo?
Após cinco anos, elas ganham o estatuto semi-legal. Graças a este fato podem ir atrás das verbas. Por exemplo, no hotel São João foi registrada uma casa de cultura, onde há oficinas, aulas da capoeira e até evangelização. Em geral, quem é proprietário desses prédios são famílias privadas. A prefeitura é uma espécie de intermediária: anula o imposto de terreno que se acumulou durante 30 anos de não utilização mas, ao mesmo tempo, a família é obrigada a vender o prédio à cooperativa de "ocupantes" por um preço inferior ao preço de mercado. A Caixa, cujo afiançador é a Prefeitura, concede àquela cooperativa um crédito com taxas de juro baixas.
É uma experiência social que visa contribuir para a revitalização do centro, que vai sofrer uma forma específica de gentrificação com a participação da classe trabalhadora, ou seja, a chamada classe "C", a qual constitui quase metade da sociedade brasileira.
Você nunca teve vontade de realizar na Polônia um projeto que fosse mais próximo da sua própria tradição - polonidade, cristianismo?
Claro que sim. Daqui a pouco iniciarei uma capela-aquecedor no parque varsoviense Agrykola (10.02-24.03.2016). É um pronunciamento de um agnóstico sobre o poder da fé que não é limitada por nenhum sistema religioso. A capela terá um pretexto utilitário, assim como aqueles aquecedores a coque bem rústicos, feitos de aço, que conhecemos das ruas de cidades polonesas, mas ela vai aquecer não só os corpos, mas também as nossas almas impuras. A capela será criada como parte do festival Gorzkie Żale (Amargas Lamentações) organizado pelo Centro do Pensamento de João Paulo II. Recebi o convite para o festival por uma feliz obra do destino pois, mesmo que eu não me sinta católico, sempre tive uma certa atração por construções arquetípicas, simples e de pequeno tamanho, ligadas à autorreflexão, meditação e memória. As discussões acerca do projeto duraram quase dois anos!
Incomodam-me manifestações exuberantes de religiosidade na arquitetura. Não me surpreende a força das Reformas, quando olho a escala do Vaticano, nem as revoltas camponesas no México, quando vejo abóbadas douradas da catedral de Puebla. Por sua vez, parece-me bem interessante o fenômeno de igrejas experimentais construídas na Polônia desde a metade dos anos 70, num gesto de resistência às autoridades. Tenho também uma certa afeição à mesquita Rustem Pashá em Istambul onde, à tarde, sempre tirava uma soneca com prazer num tapete grosso.
Minha atitude em relação à arquitetura sacra é, portanto, cheia de ambiguidades. Por isso, a nossa capelinha varsoviense será um lugar em que podemos nos aquecer e também refletir, em um impulso de reflexão quase que primitivo causado pela imagem do fogo na lareira. Espero que algum corredor perdido pare em sua frente e, aquecendo as mãos, lhe passe em sua mente a pergunta que Henryk Tomaszewski colocou de uma forma bem bonita nos seus quadrinhos sem palavras, em que uma figurinha de um homem corre cada vez mais rápido nas imagens seguidas, para afinal cair na cova. "Por que diabos eu corro tanto?"
Varsóvia, dezembro de 2015
Autor: Agnieszka Sural, tradução para o português: Magdalena Walczuk
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